Panorama da cobertura da vacina tríplice viral e da incidência
do sarampo no Brasil, 2003 a 2020

Yara H M Hökerberg, Wagner de Souza Tassinari, Luan Noé da Silva, Marta Bonimond, Sonia Regina Lambert Passos, Marcel de Souza Borges Quintana e Raquel de Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira

Novembro de 2024

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Introdução






O sarampo é uma doença viral prevenível por vacinação, transmissível por via respiratória, com alto poder de disseminação e de evolução para gravidade, especialmente em indivíduos com déficit imunológico (Brasil, 2023). Estudos na Europa e Estados Unidos mostraram que um caso de sarampo pode transmitir a doença para cerca de 12 a 18 pessoas (Guerra et al, 2017). Os reflexos desta doença podem ser ainda mais graves e de maior magnitude em regiões com alta vulnerabilidade social, com maior risco de insegurança alimentar e desnutrição infantil (Xia et al, 2022). O alto poder de disseminação pode desestruturar e comprometer a vida nas áreas rurais e indígenas, que dependem do trabalho físico e ações coletivas para garantir a sobrevivência das famílias, tais como caça, pesca, plantio de subsistência, cuidado dos animais, além da dificuldade de acesso aos serviços de saúde (Ogbu et al, 2022; Coimbra Jr, 1987).
A principal medida de prevenção contra o sarampo é a vacina. Além das ações de imunização, a vigilância epidemiológica do sarampo engloba ações para o diagnóstico e detecção oportuna, isolamento, tratamento e monitoramento dos casos e suas complicações (Brasil, 2023; Rall, 2003).
A vacina de sarampo foi introduzida no Brasil na década de 1960 e várias campanhas de vacinação ocorreram nas décadas subsequentes, em resposta às epidemias e com o intuito de controlar esta e outras doenças imunopreveníveis associadas às altas taxas de mortalidade infantil (Domingues et al, 1997). O Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi criado em 1973 e, nos seus 50 anos de existência, foi fundamental na redução da transmissão de doenças imunopreveníveis, tornando-se referência mundial, reconhecido pela Organização Mundial e Panamericana de Saúde (OMS e OPAS). Oferta, gratuitamente, mais de 45 imunobiológicos no Sistema Único de Saúde e, portanto, é um dos maiores programas de vacinação do mundo (Brasil, 2023).
A vacina contra o sarampo entrou no calendário de imunização de rotina para as crianças em 2000. Inicialmente, era ofertada a vacina monovalente aos nove meses de idade da criança, substituída pela vacina tríplice viral, contra sarampo, rubéola e cachumba, aos 12 meses de idade. Desde 2007, tem sido recomendada duas doses, aos 12 e 15 meses de idade e, a partir de 2013, a segunda dose da vacina de sarampo passou a ser aplicada em conjunto com a vacina da varicela, por aplicação simultânea das duas vacinas ou da vacina conjugada tetraviral (Brasil, 2023).
Em 2016, o Brasil recebeu o certificado de eliminação do sarampo na Organização Panamericana de Saúde (OPAS), época em que a região das Américas foi considerada a primeira zona livre de sarampo do mundo. Entretanto, o Brasil perdeu este certificado de eliminação do sarampo em 2019, devido ao retorno da transmissão desta doença em território nacional, relacionada à redução da cobertura vacinal (Sato et al, 2023; Brasil, 2023).

Fonte: Elaborado pela autora Bonimond.

Aspectos metodológicos

Este boletim tem o objetivo de apresentar a evolução temporal e a distribuição espacial da cobertura da vacina tríplice viral e dos casos de sarampo no Brasil, no período de 2003 a 2020. Ele mostra gráficos de linhas e mapas das informações anuais da cobertura vacinal e número de casos, consolidadas por região, unidade da Federação (UF) e microrregião. Adicionalmente, foram avaliadas mudanças na tendência da série de cobertura vacinal anual nas regiões pelo modelo de regressão segmentada de joinpoint.

Fonte de dados

As informações foram extraídas dos Sistemas de Informação de imunização (SI-PNI) e de notificação de agravos (SINAN). As informações do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a população do Censo Demográfico 2010 foram obtidas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Dados sobre óbitos infantis foram coletados no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e os dados da cobertura de atenção básica foram extraídos da Secretaria de Atenção Primária a Saúde em https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml.
As informações foram obtidas em planilhas no Microsoft Excel e analisadas no software livre R 4.3.2.

Financiamento

Este projeto recebeu o financiamento da Rede PMA APS - Programa de Políticas Públicas, Modelos de Atenção e Gestão do Sistema e Serviços de Saúde sobre Atenção Primária à Saúde (2020-2023).

Cobertura da vacina tríplice viral

O Brasil apresentou uma queda importante na cobertura da primeira dose da vacina tríplice viral, particularmente após 2015, quando a maioria das regiões não alcançou a meta de vacinar 95% das crianças residentes (Figura 1).
Figura 1. Evolução anual da cobertura da vacina tríplice viral (1 dose), Brasil e regiões, 2003 a 2020.
Figura 1. Evolução anual da cobertura da vacina tríplice viral (1 dose), Brasil e regiões, 2003 a 2020.
A região Norte foi a que teve os piores resultados, com valores abaixo de 70% em alguns períodos. Pará e Roraima, na região Norte, Maranhão (Nordeste) e Distrito Federal (Centro-Oeste) foram os estados que apresentaram cobertura vacinal abaixo de 75% em algum ano do período (Figura 2).
Figura 2. Variação da cobertura da vacina tríplice viral (1ª dose), Brasil e regiões, 2003 a 2020.
Figura 2. Variação da cobertura da vacina tríplice viral (1ª dose), Brasil e regiões, 2003 a 2020.
A análise da tendência por modelos de regressão segmentada joinpoint confirmou este decréscimo anual na cobertura vacinal de primeira dose da tríplice viral a partir de 2014 para todas as regiões. Entretanto, o Sudeste já mostrava uma queda na cobertura desta vacina de 96% de 2003 a 2008 (Figura 3).

Figura 3. Tendência temporal da cobertura vacinal por regiões obtidas no modelo de regressão segmentada de Joinpoint, Brasil, 2003 a 2020.

Apesar da segunda dose da vacina tríplice viral ter entrado no calendário vacinal de rotina em 2007, nenhuma região brasileira alcançou a meta de vacinar 95% das crianças (Figura 4).
Figura 4. Evolução anual da cobertura da vacina tríplice viral (2ª dose), Brasil e regiões, 2003 a 2020.
Figura 4. Evolução anual da cobertura da vacina tríplice viral (2ª dose), Brasil e regiões, 2003 a 2020.

Indicadores socioeconômicos e Cobertura vacinal

A cobertura vacinal parece depender do IDH. Em 2015, observa-se que as UF com os menores valores de IDH (<0,68) têm menores coberturas vacinais (Figura 5A). Em 2020, observa-se que todas as UF apresentam-se abaixo da meta, independente do IDH, mas com valores mais baixos de cobertura em estados com até 0,70 de IDH (Figura 5B).

(A)

(B)

Figura 5. Distribuição da cobertura vacinal segundo Índice de Desenvolvimento Humano, Unidades da Federação, Brasil, 2015 e 2020. A=2015, B=2020

A cobertura vacinal teve associação com a Taxa de Mortalidade infantil (TMI), calculada pelo número de óbitos infantis a cada 1000 nascidos vivos. Embora não se observe associação entre cobertura vacinal e TMI em 2015 (Figura 6A), observa-se uma tendência decrescente de redução da cobertura vacinal com o aumento de TMI no ano de 2020 (Figura 6B).

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Figura 6. Distribuição da cobertura vacinal segundo Taxa de Mortalidade Infantil (/1000 nascidos vivos), Unidades da Federação, Brasil, 2015 e 2020. A=2015, B=2020

A cobertura vacinal não apresentou associação com a cobertura da atenção básica (AB) nos anos de 2015 a 2020 (Figura 7).

(A)

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Figura 7. Distribuição da cobertura vacinal segundo cobertura da atenção básica (AB), Unidades da Federação, Brasil, 2015 e 2020. A=2015, B=2020

Notificações de sarampo

Epidemias de sarampo foram registradas nos anos 2013 e 2014, no período pré-certificação, no Amazonas e Ceará. Mas, a partir de 2018, foram notificados mais de 7500 casos de sarampo no Amazonas e mais de 15000 casos no Amapá (Figura 8).
Figura 8. Distribuição dos casos de sarampo nos estados brasileiros, 2003 a 2020.
Figura 8. Distribuição dos casos de sarampo nos estados brasileiros, 2003 a 2020.

Evolução da cobertura da vacina tríplice viral (1ª dose) e notificações de sarampo no Brasil

De 2015 a 2020, todas as regiões brasileiras notificaram casos de sarampo, com maior quantidade nas regiões Sudeste e Norte. A cobertura vacinal esteve abaixo da meta de 95% em todas as regiões, a menor foi registrada na região Norte do país (Figura 9).

Figura 9. Cobertura da vacina tríplice viral (1ª dose) e notificação de casos de sarampo, regiões brasileiras, 2015 a 2020.

De 2009 a 2014, a cobertura de primeira dose da vacina tríplice viral alcançou a meta de 95% na maioria dos estados e microrregiões brasileiras. Os estados do Sul, Piauí no Nordeste, Acre e outras microrregiões do Amazonas, Amapá, Roraima e Tocantins tiveram as mais baixas coberturas vacinais. Neste período, registrou-se poucos casos de sarampo no país (Figuras 10A e 10B).

(A)

(B)

Figura 10. Cobertura da vacina tríplice viral (1ª dose) e casos de sarampo nas microrregiões e unidades da federação, Brasil, 2009 a 2014. A= Cobertura vacinal, B= Casos de sarampo

Entretanto, no período de 2015 a 2020, houve uma redução substancial na cobertura vacinal da primeira dose da vacina tríplice viral, os menores valores nos estados da região Norte do país, com registro de casos em várias microrregiões, particularmente no Amazonas, Pará e Roraima. Na região Sudeste, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro apresentaram o maior número de notificações de sarampo (Figura 11).

(A)

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Figura 11. Cobertura da vacina tríplice viral (1ª dose) e casos de sarampo nas microrregiões e unidades da federação, Brasil, 2015 a 2020.A= Cobertura vacinal, B= Casos de sarampo

A vacinação tríplice viral é a medida mais eficaz para prevenção e eliminação da transmissão do sarampo, sendo necessária a aplicação de duas doses. O Brasil possui um dos maiores programas de vacinação do mundo e todos os indivíduos deveriam estar imunizados contra esta doença (Brasil, 2023).
O retorno da transmissão do sarampo no Brasil está relacionado às baixas coberturas da vacina tríplice viral. A redução nos níveis de cobertura vacinal da primeira dose associada ao fato de nunca termos alcançado a meta de cobertura para a segunda dose da vacina tríplice viral expõem o país a uma situação de vulnerabilidade com relação à transmissão do sarampo. A região Norte é a que tem os piores níveis de cobertura vacinal de primeira dose da vacina tríplice viral, seguida das regiões Nordeste e Sudeste, com registro de casos de sarampo (Goldani, 2018; Lemos et al, 2017).
Estes resultados mostram uma desigualdade regional na cobertura vacinal e no risco de transmissão desta doença, o que pode auxiliar no planejamento de ações para o resgate das altas coberturas vacinais de primeira dose e para melhorar a adesão à segunda dose da vacina tríplice viral, necessária para garantir a imunização de crianças e adultos.

REFERÊNCIAS:

  • Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Departamento de Articulação Estratégica de Vigilância em Saúde e Ambiente. Guia de vigilância em saúde : volume 1 [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente, Departamento de Articulação Estratégica de Vigilância em Saúde e Ambiente. – 6. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2023. Disponível em: file:///C:/Users/labep/Downloads/guia_vigilancia_saude_6ed_at.v1.pdf. Acesso em: 03/12/2023.

  • Coimbra Jr., C. E. A.. (1987). O sarampo entre sociedades indígenas brasileiras e algumas considerações sobre a prática da saúde pública entre estas populações. Cadernos De Saúde Pública, 3(1), 22–37. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1987000100004.

  • DOMINGUES, Carla Magda Allan S. et al. A evolução do sarampo no Brasil e a situação atual. Inf. Epidemiol. Sus [online]. 1997, vol.6, n.1 [citado 2023-12-03], pp.7-19. http://dx.doi.org/10.5123/S0104-16731997000100002.

  • Goldani LZ. Measles outbreak in Brazil, 2018. Braz J Infect Dis 2018; 22(5):359-359. 19.

  • Guerra FM, Bolotin S, Lim G, Heffernan J, Deeks SL, Li Y, Crowcroft NS. The basic reproduction number (R0) of measles: a systematic review. Lancet Infect Dis. 2017 Dec;17(12):e420-e428. doi: 10.1016/S1473-3099(17)30307-9. Epub 2017 Jul 27. PMID: 28757186.

  • Lemos DRQ, Franco AR, Roriz MLFS, Carneiro AKB, Garcia MHO, Souza FL, Cavalcanti LPG. Measles epidemic in Brazil in the post-elimination period: coordinated response and containment strategies. Vaccine 2017; 35(13):1721-1728.

  • Ogbu TJ, Scales SE, de Almeida MM, van Loenhout JAF, Speybroeck N, Guha-Sapir D. Predictors of exceeding emergency under-five mortality thresholds using small-scale survey data from humanitarian settings (1999 - 2020): considerations for measles vaccination, malnutrition, and displacement status. Arch Public Health. 2022 Jun 28;80(1):160. doi: 10.1186/s13690-022-00916-0.

  • Rall GF. Measles virus 1998-2002: progress and controversy. Annu Rev Microbiol. 2003;57:343-67. doi: 10.1146/annurev.micro.57.030502.090843.

  • Sato APS, Boing AC, Almeida RLF, Xavier MO, Moreira RDS, Martinez EZ, Matijasevich A, Donalisio MR. Measles vaccination in Brazil: where have we been and where are we headed? Cien Saude Colet. 2023 Feb;28(2):351-362. Portuguese, English. doi: 10.1590/1413-81232023282.19172022.

  • Xia S, Gullickson CC, Metcalf CJE, Grenfell BT, Mina MJ. Assessing the Effects of Measles Virus Infections on Childhood Infectious Disease Mortality in Brazil. J Infect Dis. 2022 Dec 28;227(1):133-140. doi: 10.1093/infdis/jiac233.